Todos os outros protetores já haviam desligado de seus médiuns, devido a hora avançada e também porque não haviam mais pessoas para serem atendidas.
Fora uma noite semelhante à tantas outras onde aquele salão enchia-se de pessoas famintas do pão da fé e do conselho amigo dos pretos velhos. Vovó Benta no entanto, continuava incorporada em seu aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando. O cambono-chefe veio até ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam encerrado, podendo ela "subir". - Salve camboninho, nega véia sabe que o terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na portera... Olhando para a porta, o cabono avistou "aquela senhora" chegando e mesmo sem nada falar à preta velha, seus pensamentos reprimiram aquele tipo de conduta que se repetia. Quando estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegava escondendo o rosto atrás de um xale. "ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura se prostitui nas outras noites e nessa, vem até aqui se fazer de santa..." pensava ele. Vovó Benta captou as ondas do pensamento do cambono e somente sorriu, pensando em como a vida é uma caixinha de surpresas. - Saravá zi fia. Como suncê tem passado? - Minha mãe, minhas noites tem sido um terror. Os pesadelos não me deixam dormir e durante o dia tenho batido perna atrás de emprego, mas a senhora sabe, a minha fama faz com que todas as portas se fechem... - Não desanima filha. Se você decidiu que realmente quer mudar sua vida, vai precisar de persistência e fé. Não desista de procurar. Há um lar onde a dor está chegando e vai precisar de alguém de coração grande, com vontade de trabalhar e com paciência. Neste lugar, enquanto a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os erros de um passado que desconhece e que por fugir dele, até hoje padece. - Eu não quero desistir, mas são muitas portas se fechando na minha cara... Às vezes penso que não vale a pena mudar de vida... - A escolha é sua, por isso o Grande Pai nos deu o livre arbítrio, porém esta preta velha vai dizer para a filha que sem subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso, é o fel que o próprio Cristo Jesus precisou provar antes de se elevar aos céus. - Minha mãezinha, ontem mesmo vim até esta casa me oferecer para limpá-la durante o dia, como maneira de começar a fazer a minha caridade, porém me aconselharam que me restringisse a vir nas sessões de caridade, pois não ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos Sagrados Orixás. - Mais uma vez o livre arbítrio filha. Jesus recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu o seu coração e não se limitou a julgar seus atos. Continua insistindo filha, mostra que a sua intenção é boa, pede uma chance de mostrar o seu trabalho. Abençoando aquela mulher sofrida, de coração e forças já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos naquele prostíbulo, Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando que estaria protegida e amparada por todos os Orixás. Despediu-se, quando a corrente mediúnica apressada, já cantava o ponto de encerramento. A Preta Velha limpando as energias de seu aparelho com o galho de Arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que alguns filhos ainda tem do real significado da caridade. Depois de largá-lo, permaneceu ainda ali junto aos outros espíritos que haviam prestado o seu serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento. Alheios à todo benefício que recebiam dos bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na parede sentindo-se cansados, outros ainda, pensavam no programa de televisão que estavam perdendo, graças "aquela senhora" que sempre atrasava o encerramento dos trabalhos. A semana corria e os acontecimentos andavam conforme a prescrição de uma força maior à dos homens. Num entardecer, aquela mulher grávida com fortes dores do parto, tenta chamar seu marido do trabalho, quando a bolsa d'água estoura e inicia-se forte sangramento. Alarmada pelo barulho, a filha adolescente sai do quarto e vendo a mãe no chão desmaiada, sai à rua gritando e chamando socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas que não hesitou em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve tempo de lavar rapidamente suas mãos e pedir à menina que trouxesse toalhas e água quente, e ali mesmo fez o parto. Não acontecia um acaso, pois ela fora adestrada pela vida em realizar partos caseiros, muitos, antes da hora... Sabia como agir e salvou a criança, mas sentindo que a mãe ofegava, ligou para um hospital chamando socorro. Quando o marido chegou em casa, assustou-se vendo aquela prostitua dentro de sua casa, com um bebê no colo. Os fatos foram relatados e correndo ao hospital, deparou-se com esposa em estado gravíssimo, vindo a desencarnar em poucas horas. Enlouquecido, agora culpava o parto mal feito, mesmo diante da afirmação médica de que a esposa havia sofrido uma parada cardíaca por problemas de pressão alta não tratada na gravidez. Saiu do hospital disposto a achar um culpado. Quando, enfurecido entrou no quarto para de lá expulsar a prostituta, assustou-se vendo que ao lado dela estava uma preta velha sorrindo. Esfregou os olhos e olhando novamente viu a mulher lhe entregando a criança e saindo. Que seria dele agora? Os vizinhos movimentaram-se nos primeiros dias, ajudando aquela família, mas depois de um mês cada um voltou a cuidar de sua vida. Na próxima gira de preto velho, o cambono-chefe ajoelhava-se chorando em frente de Vovó Benta, com um bebê nos braços, o que deveria fazer. - Zi fio, porque tanta tristeza? Esta criança é uma benção. -Mas não tem mãe.. - exclamava ele choroso .- Não tem mãe mas tem uma avó. - Não minha mãe, as duas avós, tanto materna quanto paterna também já desencarnaram. - Zi fio aguarde ... aquela que é a avó do "curumim" está chegando. - O cambono estremeceu ao ver "aquela mulher" novamente ali. - Avó de meu filho? - O camboninho esquece que foi ela que o salvou? Se serviu de mãe, poderá servir de avó. Tem idade e experiência para tanto. - Mas não tem moral! - Zi fio, essa moral de que fala é um chapéu vistoso que dá imponência quando convém, e que serve para esconder a cara quando a vergonha chega. Larga de tanto orgulho e contrata essa filha que tanto precisa de um trabalho, para cuidar do filho que ela mesmo fez vir ao mundo. Naquela noite, durante o sono, o cambono foi levado a outras paragens do mundo astral e dos quadros que presenciou, foram trazidos à sua mente física, pela manhã como uma forte vontade, senão necessidade, de chamar "aquela mulher" para ser babá de seu filho. E assim o fez. Ao pedir seus documentos para o devido registro, surpreendeu-se com seu nome verdadeiro, pois a conhecia por Madame Zulu, seu nome de guerra. Então ela passou a lhe contar que havia conhecido um rapaz rico que a engravidou, quando ainda muito jovem. Por impedimento das famílias, não puderam ficar juntos. Durante a gravidez toda foi obrigada a se esconder e quando o filho nasceu, sumiram com ele. Sua dor havia sido tão grande que saiu pelo mundo a procura do bebê sem nunca ter logrado êxito, até que desanimada e desacreditada, se jogou naquela casa e lá passou a viver de prazeres ilusórios. Falou de suas decepções, de sua tristeza e da saudade que tinha do filho que mal conhecera. O coração daquele homem agora disparava porque algo muito forte gritava dentro dele. Perguntou por datas, por nomes, por locais e não havia mais dúvidas: - era ela..."aquela mulher" era sua mãe! Entre soluços jogou-se aos seus pés, contando sua história de abandono e de carência materna no orfanato. Naquela noite, lá no terreiro, um cambono e uma ex-prostituta, agora mãe e filho, ajoelhados aos pés da preta velha choravam emocionados, apresentando o filho e neto para que fosse abençoado. - Camboninho entende agora porque a preta velha ficava esperando até altas horas para que a filha chegasse no terreiro? Entende porque se diz que "Deus escreve certo por linhas tortas"? Esse pequeno ser que desfruta agora de vosso amor, tem uma história também, mas seja qual for, prometam ampará-lo e amá-lo, o tanto que vossos corações forem capazes, para que a justiça se cumpra. Talvez um dia viessem a descobrir que em vida passada, o cambono e sua mãe haviam sido pais inconseqüentes daquele ser que ali renascia e que por causa disso, havia se perdido. Tudo o que mais abominamos, faz parte de nós. A vida sempre nos coloca de frente à espelhos, que independente das máscaras que usarmos, vão sempre refletir nossa imagem verdadeira.
Preta Velha já foi.. já foi prá Aruanda... Vovó Benta
Fora uma noite semelhante à tantas outras onde aquele salão enchia-se de pessoas famintas do pão da fé e do conselho amigo dos pretos velhos. Vovó Benta no entanto, continuava incorporada em seu aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando. O cambono-chefe veio até ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam encerrado, podendo ela "subir". - Salve camboninho, nega véia sabe que o terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na portera... Olhando para a porta, o cabono avistou "aquela senhora" chegando e mesmo sem nada falar à preta velha, seus pensamentos reprimiram aquele tipo de conduta que se repetia. Quando estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegava escondendo o rosto atrás de um xale. "ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura se prostitui nas outras noites e nessa, vem até aqui se fazer de santa..." pensava ele. Vovó Benta captou as ondas do pensamento do cambono e somente sorriu, pensando em como a vida é uma caixinha de surpresas. - Saravá zi fia. Como suncê tem passado? - Minha mãe, minhas noites tem sido um terror. Os pesadelos não me deixam dormir e durante o dia tenho batido perna atrás de emprego, mas a senhora sabe, a minha fama faz com que todas as portas se fechem... - Não desanima filha. Se você decidiu que realmente quer mudar sua vida, vai precisar de persistência e fé. Não desista de procurar. Há um lar onde a dor está chegando e vai precisar de alguém de coração grande, com vontade de trabalhar e com paciência. Neste lugar, enquanto a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os erros de um passado que desconhece e que por fugir dele, até hoje padece. - Eu não quero desistir, mas são muitas portas se fechando na minha cara... Às vezes penso que não vale a pena mudar de vida... - A escolha é sua, por isso o Grande Pai nos deu o livre arbítrio, porém esta preta velha vai dizer para a filha que sem subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso, é o fel que o próprio Cristo Jesus precisou provar antes de se elevar aos céus. - Minha mãezinha, ontem mesmo vim até esta casa me oferecer para limpá-la durante o dia, como maneira de começar a fazer a minha caridade, porém me aconselharam que me restringisse a vir nas sessões de caridade, pois não ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos Sagrados Orixás. - Mais uma vez o livre arbítrio filha. Jesus recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu o seu coração e não se limitou a julgar seus atos. Continua insistindo filha, mostra que a sua intenção é boa, pede uma chance de mostrar o seu trabalho. Abençoando aquela mulher sofrida, de coração e forças já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos naquele prostíbulo, Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando que estaria protegida e amparada por todos os Orixás. Despediu-se, quando a corrente mediúnica apressada, já cantava o ponto de encerramento. A Preta Velha limpando as energias de seu aparelho com o galho de Arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que alguns filhos ainda tem do real significado da caridade. Depois de largá-lo, permaneceu ainda ali junto aos outros espíritos que haviam prestado o seu serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento. Alheios à todo benefício que recebiam dos bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na parede sentindo-se cansados, outros ainda, pensavam no programa de televisão que estavam perdendo, graças "aquela senhora" que sempre atrasava o encerramento dos trabalhos. A semana corria e os acontecimentos andavam conforme a prescrição de uma força maior à dos homens. Num entardecer, aquela mulher grávida com fortes dores do parto, tenta chamar seu marido do trabalho, quando a bolsa d'água estoura e inicia-se forte sangramento. Alarmada pelo barulho, a filha adolescente sai do quarto e vendo a mãe no chão desmaiada, sai à rua gritando e chamando socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas que não hesitou em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve tempo de lavar rapidamente suas mãos e pedir à menina que trouxesse toalhas e água quente, e ali mesmo fez o parto. Não acontecia um acaso, pois ela fora adestrada pela vida em realizar partos caseiros, muitos, antes da hora... Sabia como agir e salvou a criança, mas sentindo que a mãe ofegava, ligou para um hospital chamando socorro. Quando o marido chegou em casa, assustou-se vendo aquela prostitua dentro de sua casa, com um bebê no colo. Os fatos foram relatados e correndo ao hospital, deparou-se com esposa em estado gravíssimo, vindo a desencarnar em poucas horas. Enlouquecido, agora culpava o parto mal feito, mesmo diante da afirmação médica de que a esposa havia sofrido uma parada cardíaca por problemas de pressão alta não tratada na gravidez. Saiu do hospital disposto a achar um culpado. Quando, enfurecido entrou no quarto para de lá expulsar a prostituta, assustou-se vendo que ao lado dela estava uma preta velha sorrindo. Esfregou os olhos e olhando novamente viu a mulher lhe entregando a criança e saindo. Que seria dele agora? Os vizinhos movimentaram-se nos primeiros dias, ajudando aquela família, mas depois de um mês cada um voltou a cuidar de sua vida. Na próxima gira de preto velho, o cambono-chefe ajoelhava-se chorando em frente de Vovó Benta, com um bebê nos braços, o que deveria fazer. - Zi fio, porque tanta tristeza? Esta criança é uma benção. -Mas não tem mãe.. - exclamava ele choroso .- Não tem mãe mas tem uma avó. - Não minha mãe, as duas avós, tanto materna quanto paterna também já desencarnaram. - Zi fio aguarde ... aquela que é a avó do "curumim" está chegando. - O cambono estremeceu ao ver "aquela mulher" novamente ali. - Avó de meu filho? - O camboninho esquece que foi ela que o salvou? Se serviu de mãe, poderá servir de avó. Tem idade e experiência para tanto. - Mas não tem moral! - Zi fio, essa moral de que fala é um chapéu vistoso que dá imponência quando convém, e que serve para esconder a cara quando a vergonha chega. Larga de tanto orgulho e contrata essa filha que tanto precisa de um trabalho, para cuidar do filho que ela mesmo fez vir ao mundo. Naquela noite, durante o sono, o cambono foi levado a outras paragens do mundo astral e dos quadros que presenciou, foram trazidos à sua mente física, pela manhã como uma forte vontade, senão necessidade, de chamar "aquela mulher" para ser babá de seu filho. E assim o fez. Ao pedir seus documentos para o devido registro, surpreendeu-se com seu nome verdadeiro, pois a conhecia por Madame Zulu, seu nome de guerra. Então ela passou a lhe contar que havia conhecido um rapaz rico que a engravidou, quando ainda muito jovem. Por impedimento das famílias, não puderam ficar juntos. Durante a gravidez toda foi obrigada a se esconder e quando o filho nasceu, sumiram com ele. Sua dor havia sido tão grande que saiu pelo mundo a procura do bebê sem nunca ter logrado êxito, até que desanimada e desacreditada, se jogou naquela casa e lá passou a viver de prazeres ilusórios. Falou de suas decepções, de sua tristeza e da saudade que tinha do filho que mal conhecera. O coração daquele homem agora disparava porque algo muito forte gritava dentro dele. Perguntou por datas, por nomes, por locais e não havia mais dúvidas: - era ela..."aquela mulher" era sua mãe! Entre soluços jogou-se aos seus pés, contando sua história de abandono e de carência materna no orfanato. Naquela noite, lá no terreiro, um cambono e uma ex-prostituta, agora mãe e filho, ajoelhados aos pés da preta velha choravam emocionados, apresentando o filho e neto para que fosse abençoado. - Camboninho entende agora porque a preta velha ficava esperando até altas horas para que a filha chegasse no terreiro? Entende porque se diz que "Deus escreve certo por linhas tortas"? Esse pequeno ser que desfruta agora de vosso amor, tem uma história também, mas seja qual for, prometam ampará-lo e amá-lo, o tanto que vossos corações forem capazes, para que a justiça se cumpra. Talvez um dia viessem a descobrir que em vida passada, o cambono e sua mãe haviam sido pais inconseqüentes daquele ser que ali renascia e que por causa disso, havia se perdido. Tudo o que mais abominamos, faz parte de nós. A vida sempre nos coloca de frente à espelhos, que independente das máscaras que usarmos, vão sempre refletir nossa imagem verdadeira.
Preta Velha já foi.. já foi prá Aruanda... Vovó Benta
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